terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Entrevista a Eusébio: "Tinha o nome de código Ruth"

Os primeiros tempos de Eusébio em Portugal não foram fáceis. Temeu morrer com frio, foi avisado para o perigo de o atropelarem e passou 12 dias escondido a dar toques numa praia de Lagos.


O Benfica foi o primeiro clube a interessar-se por si?  Não. O primeiro foi o Belenenses, só depois é que o FC Porto e o Benfica entraram na corrida. Quando eu tinha 17 anos, o Belenenses fez uma digressão a Lourenço Marques e o treinador deles era o Otto Glória, que prontamente trouxe para Lisboa boas referências sobre mim. Nesse momento, o Benfica decidiu “subir a parada”, passando dos 110 para os 250 contos (dos 550 para os 1250 euros).

E o Sporting?   O Sporting queria levar-me à experiência. Mas os meus irmãos mais velhos disseram-me sempre que ou saía de Moçambique com um contrato assinado ou mais valia ficar. Eu também tinha muita confiança em mim e já tinha marcado golos ao Belenenses, sabia que não era jogador para ir fazer testes. Quando o Hilário (jogador do Sportng) me ligou, eu disse-lhe que me pagassem ou nada feito. E ainda lhe disse: “Estás a ver o Seminário (jogador peruano, estrela do Sporting m 1960)? Eu dou-lhe avanço a marcar golos. Querem experimentar o quê?”.

Diz-se que foi raptado pelo Benfica?  Nunca! Eu só assinei um contrato e foi com o Benfica. Só quando aterrei aqui é que se começaram a inventar raptos. O contrato do Benfica com a minha velha até dizia que se não me adaptasse em Lisboa, o Benfica poderia recuperar o dinheiro que estava no Banco Nacional Ultramarino. O Mário Coluna também esteve envolvido nesta jogada – quando o Benfica quis entregar um cheque à minha mãe, ele disse para lhe entregarem dinheiro vivo. Eram mais de 100 contos em notas azuis. A minha mãe nunca tinha visto aquilo.

Mas o Sporting não desistiu…  Pois não. Um dia, já em Lisboa, o Hilário foi buscar-me ao lar para irmos ao cinema. A meio do caminho, disse que tinha de passar por casa porque não tinha dinheiro. Eu tinha dinheiro e até lhe disse que lhe pagava o jantar no Bonjardim. Mas, depois, apanhei-lhe a jogada. Chegámos a casa do Hilário e estava lá o Jaime Duarte, dirigente do Sporting, com uma mala com 500 contos. Meteu o dinheiro em cima da mesa e disse que era meu se assinasse pelo Sporting. Disse-lhe que era menor, que não era maluco e que não ia assinar dois contratos. Em dialecto, comecei a gritar ao Hilário para nos irmos embora e o vizinho do 3ºdto, que era do Benfica, ligou ao Gastão Silva (dirigente do Benfica) para me ir buscar. A aflição dele era que eu tivesse assinado qualquer documento. Eu já estava farto daquilo tudo. Agarrei-lhe nos ombros e disse-lhe: “Sr. Gastão, não assinei nada. Leve-me apenas para o lar.

Foi por medo que o Benfica o escondeu no Algarve?  Medo de que eu voltasse para Moçambique, não do Sporting. Eu tinha só 18 anos e estava muito saturado. Foi então que o Sr. Domingos Claudino (dirigente do Benfica), que tinha dois ou três táxis, me disse para irmos dar uma volta. “Para dar uma volta é para sair de Lisboa, se é para aqui ficar vou já para Moçambique”, respondi-lhe. E levou-me para Lagos.

Em segredo?  Nem os meus colegas souberam. O Claudino disse que íamos para Espanha, mas fomos para um hotel na Meia-Praia durante 12 dias.

E como ocupava os seus dias?  Era Inverno e na praia estavam apenas estrangeiros. Ninguém me conhecia. Pegava na bola de manhã e passava os dias a correr e a dar toques sozinho na praia.

Como se sentia nessa altura?  Estava triste e desiludido. A pressão entre o Benfica e o Sporting era tanta que o Coluna chegou a aconselhar-me a ter cuidado a atravessar a estrada porque podiam atropelar-me. Liguei à minha mãe a pedir para regressar a casa mas ela aconselhou-me a ficar. Foram duas ou três semanas em que pus em causa a minha carreira no futebol. Não guardo ódio a ninguém, mas a partir daí comecei a preparar-me ainda melhor para os jogos contra o Sporting. Queria mostrar-lhes que não era jogador para experiências nem para raptos.

E com tanta disputa teve de embarcar para Lisboa com nome falso…  É verdade. O meu nome de código era Ruth…Ruth Malosso. Os gajos dos correios em Lisboa eram todos do Sporting e para não se inteirarem da minha viagem os responsáveis do Benfica chamavam-me Ruth nos telefonemas e nos telegramas. Eu tinha nome de mulher e nem sabia! Só no aeroporto é que me apercebi, quando me anunciaram com esse nome. Fui o último a embarcar.

Porquê o último?  Porque eu não queria embarcar nessa altura. Queria passar o Natal com a minha mãe e com a minha família. Mas o Benfica disse-me que tinha de ser nesse dia por causa das inscrições. Até inventei à última hora que não tinha mala para viajar. Armei-me em “chico-esperto” mas foram logo comprar uma para eu me meter no avião.

Como foi recebido no lar do Benfica?  No meu quarto estavam o José Torres e o Cruz. O Torres era o único que estava acordado e falámos logo na primeira noite. Depois de participar no primeiro treino, ele perguntou-me o que achava da equipa. Respondi-lhe: “É boa, mas acho que jogo de início”. Ele ficou admirado: “Mas eu ando aqui há três anos e não jogo e tu chegas aqui e achas que jogas logo?”. “Isso é problema seu. Eu sei que vou jogar mas não diga nada a ninguém.

Quais foram as reacções da equipa aos seus primeiros treinos?   Lembro-me de ter marcado um grande golo e do Bella Guttmann, o treinador, virar-se para o adjunto, o Fernando Caiado, e gritar: “O menino…é ouro”. O Guttmann nunca me tratou por Eusébio. Chamava-me sempre “menino”.

E, mesmo sem jogar, acompanhava a equipa?  A primeira viagem após ter chegado do calor de Moçambique foi à Covilhã, em pleno Inverno. O Coluna emprestou-me o sobretudo e mesmo assim, a meio do jogo, o presidente teve de meter-me o sobretudo dele aos meus ombros. Tive medo de morrer de frio. Telefonava à minha mãe a pedir-lhe para voltar porque achava mesmo que ia morrer de frio. Só não acompanhei a equipa à final da Taça dos Campeões Europeus, em Berna, porque tive jogo em Setúbal. Nesse dia o pai do Mourinho defendeu-me um penalti. Só falhei quatro penalties na minha carreira.

Como foi o seu primeiro encontro com o Pele?  Estávamos a perder 5-0 a vinte minutos do fim e eu estava no banco a olhar para o Santos e a pensar que jogavam bem, mas que eram muito lentos. Foi aí que o Guttmann me manda entrar. Fintei três, rematei e fiz um golo. A bola foi ao centro, recuperei-a e fiz outro. Logo a seguir marquei o terceiro. Ainda tive tempo de sofrer um penalti mas o José Augusto falhou. No final do jogo, o Pele veio ter comigo, trocámos a camisola e fizemos amizade nesse momento. No dia seguinte, a capa do L’Équipe era: “Pérola negra de Moçambique 3 – Pelé 1. E o Pele, em entrevista, avisou: “Entrou um menino que ninguém conhecia e marcou logo três golos. Chama-se Eusébio”.

A partir desse falhanço do José Augusto passou a marcar as grandes penalidades… Quando o Augusto falhou, disse logo ao Coluna que na minha terra quem marcava os penalties era eu. Então, no treino, o Guttmann meteu-nos a marcar penalties ao Costa Pereira. Eu marquei os cinco. O Zé Augusto falhou dois. Daí para a frente, ficava no final do treino a praticar penalties e livres. O meu truque nos livres era mandar uma “pastilha” contra a barreira na primeira tentativa. À segunda, com o peso da bola e o corpo molhado, a barreira encolhia-se de medo. Foi assim que marquei muitos golos.

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