quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Reportagem: Onde é que as empresas públicas desperdiçam o seu dinheiro

Procura emprego? Há um sector em expansão, imune à crise. Segundo os últimos números disponíveis, entre 2007 e 2009 os administradores públicos passaram de 377 para 448 – ou seja, cresceram 19%. Agora, o Governo quer reduzir o seu número em 20%: bastava ter parado de contratar há cinco anos.
Não quer um trabalho qualquer, mas sim um emprego bem pago? Fique a saber que o valor médio de remuneração é de 344 mil euros por ano. E que enquanto em 2007 os gestores públicos custavam ao Estado 26,8 milhões de euros, dois anos depois, mesmo com a crise internacional pelo meio, foram-lhes pagos 32 milhões de euros. Aliás, foram os postos de administradores-executivos, os mais bem remunerados, aqueles que cresceram mais: passaram de 333 para 406.
Quer ter várias hipóteses de carreira? Mantenha-se tranquilo: o número de empresas públicas também cresceu. Só nos últimos três anos surgiram a Parque Escolar, a Frente Tejo, a Arco Ribeirinho Sul, a EMA (meios aéreos), o SIEV (matrícula electrónica), a Agência Nacional de Compras, várias sociedades Polis e empresas de cultura como a Opart (Teatro de São Carlos e Companhia de Bailado) e o Teatro Nacional de São João. Em 2008 havia 84 empresas públicas, em 2009 eram 93. No fim de 2010, no site da direcção-geral do Tesouro constavam 143 empresas, contabilizando também as participações em que o Estado é minoritário. Se se somarem as empresas municipais, serão mais de mil.

Depois desta abundância, e já este ano, o Ministério das Finanças exigiu um corte de 15% nas despesas de 93 empresas públicas – quer poupar 700 milhões de euros. Mas a ordem de Teixeira dos Santos foi pouco ouvida: só 16 empresas prevêem cumpri-la. Outras propõem-se reduzir menos do que lhes foi exigido: CP, Caixa Geral de Depósitos, CTT, Transtejo e Parque Expo querem cortar até 10%. Algumas estão em negociações. É o caso da ANA e da Estradas de Portugal.
Há razões para o Governo querer cortar: o sector é perigosamente deficitário e viciado em aumentos de dívida. Em apenas um ano, de 2009 para 2010, as dívidas do sector empresarial do Estado, da Parpública, das empresas públicas do sector da Saúde e da Estradas de Portugal aumentaram mais de 6 mil milhões de euros. Para se ter uma ideia do assustador tamanho deste buraco, basta lembrar que a receita gerada pelo aumento do IVA de 21 para 23% em 2010 deverá render mil milhões de euros: seis vezes menos. Só o passivo da Estradas de Portugal disparou quase 1.400% num ano e meio. Em 2009 era de 15,2 mil milhões de euros – 10% do PIB nacional.

O sector dos transportes é o que tem pior desempenho: as dívidas da CP e da Refer mais do que quadruplicaram nos últimos 14 anos e estão próximas dos 9 mil milhões. E o dinheiro entregue pelo Estado há muito que não é suficiente para resolver o problema: em 2009, as empresas públicas precisaram de 14,5 mil milhões de euros para se financiarem. E metade desse valor esgotou-se em pagamento de empréstimos, juros e outros encargos da dívida.
“Se o Estado accionista, como devia, repusesse o capital das suas empresas e pagasse, na íntegra e a tempo e horas, as indemnizações compensatórias, o défice orçamental presumivelmente aumentaria cerca de 3%”, afirma Carlos Moreno, juiz jubilado do Tribunal de Contas e autor do bestseller 'Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro'.
As horas de trabalho pagas nem sempre servem para isso mesmo, trabalhar. Sobretudo no início da semana: às segundas e terças-feiras, a produtividade dos funcionários da Soflusa pode nem chegar aos 50%. Em Junho de 2009, os colaboradores da empresa que assegura as ligações fluviais entre Lisboa e a Margem Sul do Tejo só trabalharam 44,58% das horas pagas. Nesse mês, de acordo com uma auditoria do Tribunal de Contas, mais de metade do tempo trabalhado não foi produtivo.
“A organização do trabalho por turnos, assente nos acordos de empresa em vigor, não é a modalidade que promove a melhor eficiência, por gerar elevadas horas pagas, mas não trabalhadas”, lê-se no relatório. “A empresa já tentou várias vezes alterar as escalas de serviço, mas tem sido confrontada sistematicamente com a oposição por parte dos sindicatos dos trabalhadores marítimos e consequentes greves. Face à actual conjuntura económico-financeira, a empresa vai implementar um novo modelo de escalas de serviço, que visa extinguir as ditas horas pagas e não trabalhadas, independentemente da oposição dos sindicatos e de eventuais greves”, esclarece a Transtejo, que controla a Soflusa.
Nas empresas do Grupo Transtejo, os trabalhadores têm direito a quatro dias por ano para tratar de assuntos pessoais. Para não sofrerem cortes salariais, têm de avisar cinco dias antes. Como as escalas de serviço são distribuídas com 10 dias de antecedência, as dispensas “podem obrigar ao recurso a trabalho extraordinário”.

Também há quem pague milhares de euros em prémios de assiduidade: em 2007, o Metro de Lisboa deu 850 mil euros para distribuir pelos funcionários que não faltaram. Sem se referir a casos particulares, Carlos Moreno diz que “a assiduidade, enquanto tal, não deve ser objecto de prémio porque se insere no quadro das obrigações de um trabalhador”.
No Metro, perde-se muito dinheiro por causa de estudos que não são actualizados. De acordo com os cálculos da empresa, citados numa auditoria de 2010 do Tribunal de Contas, em 2008 o Metro perdeu 12 milhões de euros com o modelo de repartição da receita dos passes intermodais e combinados – a divisão dos lucros entre as várias empresas baseia-se em dados estatísticos que têm 22 anos. E entretanto o Metro ganhou perto de 50 milhões de passageiros.
O dinheiro também desaparece das empresas públicas por causa dos serviços de consultoria pedidos a especialistas externos. De acordo com o Tribunal de Contas, 69 empresas públicas gastaram, em 2009, mais de 100 milhões em contratos de consultoria, a maior parte por ajuste directo e quase sempre sem consultar preços de concorrentes. Em mais de metade dos casos, nem sequer houve contrato escrito.
No caso da Estradas de Portugal, o escritório de advogados Vieira de Almeida recebeu 195 mil euros para assessoria jurídica em 2009; a Sérvulo & Associados, 190 mil; e a Jardim, Sampaio, Magalhães e Silva & Associados, 80 mil para a renegociação do contrato de concessão com a Brisa. E até para a “assessoria jurídica para a elaboração de um caderno de encargos-tipo para empreitadas de conservação corrente rodoviária” foi preciso pagar 27.500 euros a António Miguel Ferro Catela.

Mas não é só nesta área que a empresa contrata fora. Os estudos financeiros são comuns: 82.800 euros para a VTM – Consultores em Engenharia, para uma assessoria de tráfego; 66 mil para a Deloitte, para um estudo de reestruturação do gabinete de expropriações; e 45 mil para o banco Efisa (assessoria económico-financeira). A empresa justifica: “A Estradas de Portugal recorre a consultoria externa sempre que se justifica e de forma limitada, ou quando tal se revela mais económico (custos mais baixos) ou quando não existam internamente recursos humanos especializados em tais matérias.”
Não é a única a fazê-lo. “Pela segunda vez tivemos uma auditoria da Inspecção-Geral de Finanças que voltou a alertar para o abuso de contratos com empresas de consultoria em gestão quando há técnicos que os poderiam fazer”, diz Vítor Narciso, do Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações. “Obviamente que os CTT não detinham competências próprias nos projectos para que contrataram empresas de consultoria”, contesta a empresa.
Apesar de estas empresas terem departamentos de Recursos Humanos, é comum recorrem a serviços externos para novas contratações: em 2009, a ANA pagou 6.550 euros para seleccionar e recrutar dois técnicos superiores. E a Estradas de Portugal pagou 5.100 euros à Find para a pré-selecção de candidatos para um lugar de quadro superior.

Nalgumas empresas de transportes, não se transporta nada: em Dezembro de 2010, um Alfa Pendular que iria participar na inauguração dos 29 quilómetros de um novo troço fez o percurso Lisboa-Álcacer do Sal vazio. Os 50 automóveis com convidados seguiram pela estrada e só entraram nas carruagens no destino. “São empresas ferroviárias muito rodoviárias. Há administradores que chegam a ir ao Porto de comboio e o motorista vai lá ter de carro”, diz José Manuel Oliveira, da Federação dos Sindicatos Ferroviários. Sem avançar números concretos, os sindicatos apontam um custo de milhares de euros para estas iniciativas.
As rescisões contratuais também têm custos: este ano, a CP prevê pagar 26 milhões para rescindir contrato com 815 trabalhadores, um valor muito superior ao gasto em 2009 (7,1 milhões) e às previsões para 2010 (5 milhões). No total, 14% dos funcionários vão sair da empresa. Motivos: ajustar a oferta à procura e cumprir os cortes exigidos pelo Governo.

O presidente pode não ser a pessoa mais bem paga dentro de uma empresa. José La Cerda é vogal da NAV, empresa que faz a gestão dos sistemas de navegação aérea, mas no fim de 2009 levou para casa mais 48 mil euros do que o então presidente, Augusto Luís. Motivo: está em comissão de serviço, requisitado pela NAV a outra empresa pública.
Entre as empresas analisadas pelo Borregas, Fernando Pinto foi o gestor público que mais recebeu em 2009: ganhou, em média, 1.150 euros por dia – com os cortes passará a receber 978 euros. Um número bastante superior ao salário médio mensal dos outros gestores públicos analisados – 358 euros por dia. Fernando Pinto não se destacou sozinho: o presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), Faria de Oliveira, recebeu 1.016 euros por cada dia de trabalho. Em terceiro lugar está o presidente da RTP, com 685 euros diários. Os salários destes três gestores (cerca de 1 milhão de euros) seriam suficientes para pagar todas as despesas dos sete administradores da Águas de Portugal nesse ano.

Já o conselho de administração que mais custa ao Estado é o da Caixa Geral de Depósitos: 1,98 milhões de euros, em 2009. Os números de 2010 vão baixar: em Julho de 2010, o Governo anunciou um corte de 5% e em Outubro outro de 10%. Resultado: Faria de Oliveira vai receber menos 208.784 euros.
O PSD, através do deputado Miguel Macedo, criticou o número de chefias nas empresas públicas. E deu o exemplo da CP, que tem “em média um chefe por cada 16,4 funcionários, com uma massa salarial que atinge os 3.500 euros”. De acordo com um estudo deste grupo parlamentar, as empresas públicas sob tutela do Ministério das Obras Públicas têm, em média, 60 cargos de chefia, com ordenados de 6.316 euros. Na TAP há mais chefes (171), mas os ordenados baixam para os 4.400 euros. Já a vizinha ANA é a empresa com salários mais elevados entre as chefias – 8.224,10 euros mensais.
Nos CTT, e de acordo com a empresa, há 1.123 chefes para 12 mil trabalhadores – um para cada 10,6 funcionários. “Este valor reflecte a existência de um responsável com funções de chefia em todas as 812 estações de correios e 320 centros de distribuição postal, bem como nas centrais de tratamento de correio de Lisboa, Coimbra e Maia”, explica a empresa. Salário médio: 1.820 euros. E, em 2009, os CTT pagaram 21,3 milhões em dividendos ao Estado. Até há casos em que o número de trabalhadores cai, mas os cargos directivos sobem. “Entre 1992 e 2008, a estrutura operacional da CP, Refer e EMEF reduziu-se em 11 mil trabalhadores, mas a estrutura directiva cresceu em quase duas mil pessoas”, garante o sindicalista José Manuel Oliveira.

Basta um dia na administração da Refer e da CP para que os administradores tenham direito a transporte vitalício gratuito nos comboios destas empresas. “Um trabalhador normal só tem direito a isso ao fim de 25 anos”, garante José Manuel Oliveira. Já na Carris e no Metropolitano de Lisboa, os funcionários, cônjuges e descendentes em idade escolar podem viajar de graça (no caso do Metro, esta regalia estende-se aos reformados e à empresa associada Ferconsult). No total, estas regalias custaram 1,5 milhões ao Metro, em 2008, e 5,6 milhões à Carris, em 2007.
A este valor acrescem os vários tipos de prémios que a Carris pagou em 2007: no total, 1,3 milhões de euros. Num ano em que a empresa deu um prejuízo de 39,3 milhões. Já os quatro administradores brasileiros que desde 2000 gerem a TAP nem tinham casa quando chegaram – ficaram num hotel nos primeiros meses. Agora, 11 anos depois, cada um recebe 4.600 euros por mês pelas despesas de alojamento. Aliás, a administração da TAP é, entre as 19 empresas analisadas pelo Borregas, a que mais regalias extra-salariais recebeu: 318 mil euros em 2009, entre despesas de telemóveis, combustível e subsídios de alimentação. Desse conjunto de empresas, seis dão cartão de crédito aos administradores – TAP, CGD, Águas de Portugal, Metro do Porto, Agência Nacional de Compras Públicas (ANCP) e Parque Expo. Na ANCP, os administradores têm um plafond de 5 mil euros.
O segundo conselho de administração que mais recebeu em regalias foi a CGD – 240 mil euros, em 2009. Rodolfo Lavrador foi quem mais gastou em telemóvel: 8.623 euros em telefonemas e mensagens, o equivalente a 718,50 euros por mês – mais do que o presidente da TAP e que todos os outros vogais da CGD juntos. Justificação: tem o pelouro internacional.
Já Rolando Martins, presidente da Parque Expo, é o que gasta mais na categoria de despesa “outros – comunicação de dados e Internet”: 12 mil euros nesta rubrica em 2009, muito mais do que os outros dois administradores (juntos gastaram 1.953 euros).
A Águas de Portugal teve de rever o plano de renovação da frota automóvel em 2010. Depois de o Diário do Borregas ter noticiado que a empresa tinha assinado um contrato de aluguer de 34 viaturas, o Governo emitiu uma portaria que ordenou a suspensão imediata do plano. Das 1.190 viaturas de serviço da empresa, quase um terço é usado pelos administradores e quadros directivos. E só o vogal responsável pela Produção e Depuração de Água, José Soares, gastou 7.186 euros em combustível em 2009. Os CTT foram das poucas empresas a tornar pública a marca dos veículos da sua frota: o vice-presidente, Pedro Coelho, tem um Mercedes C220 CDI de 2009 e os vogais um Audi 6 2.0 TDI.

Na RTP, Ângela Camila, da Comissão de Trabalhadores, critica esta forma de remuneração: “Há 66 carros da empresa, de alta cilindrada (Audis), atribuídos a directores, subdirectores e assessores, com cartão Galp Frota, para uso profissional (também ao fim-de-semana) e que custam à empresa 600 mil euros por ano. Seria moralizante porem termo a regalias que não se justificam e criam mal-estar interno numa altura em que a maior parte dos funcionários é atingida pelos cortes.”
Para diminuir custos, a Estradas de Portugal cortou nos carros – tem 399, mas em 2007 a frota era de mais de 900 viaturas, segundo a empresa. E as deslocações também são controladas. Nas oito viagens de serviço que os administradores fazem por ano, apenas viajam em classe económica.

Os sete administradores da Caixa foram os que mais prémios receberam em 2009: perto de 1 milhão de euros, quase o dobro dos prémios dos seis administradores da TAP. Em 2009, houve pelo menos nove empresas públicas que pagaram prémios de gestão: TAP, CGD, Parpública, Águas de Portugal, CTT, ANA, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Baía do Tejo e Agência Nacional de Compras – entregaram 2 milhões em bónus referentes a 2008. A situação vai mudar: durante os três anos de execução do Programa de Estabilidade e Crescimento (2010 a 2013), as empresas públicas e participadas não poderão distribuir prémios.
Foram 400 livros e 36 kg de papel. Em 2009, a CP gastou 5.100 euros na Livraria Almedina. No saco de compras ia só um título, Gerir a Mudança. Não foi a única despesa da empresa: em Maio desse ano, a CP gastou 6.016 euros em brindes – pins com símbolos da empresa em prata e ouro; e 12.400 euros em animação para o Comboio Histórico, que este ano regressa à linha do Douro. Nesta área, a TAP já começou a cortar: não gasta dinheiro em brindes nem em ofertas de Natal.
As festas são outro dos temas que geram despesas: para celebrar os 50 anos, o Metro de Lisboa organizou um concerto na estação do Cais do Sodré – custou 15 mil euros. E pagou 7.659 euros em ofertas de Natal para os colaboradores: 1.350 garrafas de vinho personalizadas com o logótipo do Metro e outros produtos gastronómicos. Entre outras despesas estão 5.962,5 euros em agendas de bolso. Mas, neste ponto, fica atrás da RTP, que gastou mais de 52 mil euros em agendas e brindes.

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