segunda-feira, 9 de maio de 2011

Inconfidências sobre José Mourinho

Foi o dia mais humilhante da vida de José Mourinho. Após a maior derrota da sua carreira – o Real Madrid tinha acabado de perder 5-0 contra o Barcelona em Camp Nou –, o treinador entrou no balneário e fingiu que não se tinha passado nada. Fingiu que nenhum jogador o tinha desiludido, que aquele resultado não era assim tão importante e que já estava a pensar na próxima jornada: “É uma derrota merecida e por isso muito fácil de digerir.” O português que gritava palavrões contra os adversários e atirava o bloco de notas ao chão durante os intervalos – até quando a equipa estava a ganhar – parecia conformado com a pior exibição da época.
Na passada terça-feira, Mourinho passou por uma experiência semelhante: foi eliminado das meias-finais da Liga dos Campeões ao empatar a um golo com o Barcelona na Catalunha. O Real já tinha perdido por 2-0 em casa numa primeira mão de grande tensão. O treinador português foi expulso e acusou a UEFA de favorecer os catalães com arbitragens que protegem os seus jogadores.
Foi o culminar de um dos períodos mais difíceis da vida de Mourinho, que falou para admitir que estes jogos foram mesmo o tudo-ou-nada. Para ele e para os madrilenos. “O meu trabalho é conseguir que o clube, sem perder a sua dimensão social no mundo, possa outra vez estruturar-se para ganhar, não de um modo isolado mas num ciclo de vitórias”.
Pela primeira vez na vida, Mourinho falhou. E pior: perdeu o controlo do balneário. Apesar da vitória na final da Taça do Rei contra o Barcelona (com um golo de Cristiano Ronaldo), o ambiente de aparente paz terminou sete dias depois, com a primeira derrota na Liga dos Campeões. Logo no dia seguinte, 26, algumas das principais estrelas atreveram-se ao que parecia impossível: criticar abertamente o treinador.
“Jogámos todos metidos lá atrás. Parece que não valemos nada. Foi tudo planeado para que, se ganhássemos, o mérito fosse todo dele”, protestou um dos titulares desse jogo em frente dos colegas e dos treinadores adjuntos Rui Faria e Aitor Karanka, que saíram do balneário para fingir que não tinham ouvido. Cristiano Ronaldo, um dos maiores aliados de Mourinho no plantel, baixou a cabeça em acordo.
Até essa altura, os jogadores eram dos poucos aliados de Mourinho, que vive rodeado de inimigos em Madrid. O primeiro foi Jorge Valdano. No início e no final de todos os jogos, o director-geral descia ao balneário para incentivar a equipa e falar com alguns jogadores em privado. Mourinho detestava isto: ver outro líder num espaço sobre o qual gosta de ter o controlo absoluto.
A tensão acumulou-se jornada após jornada até à ruptura total, em Janeiro, quando Valdano boicotou a contratação do avançado português Hugo Almeida. Apesar de ter afirmado publicamente (e contra a opinião de Mourinho) que o plantel não precisava de um avançado, o argentino confessou em privado que o seu objectivo era travar o peso de Jorge Mendes no clube. Além do treinador, o empresário negociou os contratos de Cristiano Ronaldo, Pepe, Ricardo Carvalho e Di Maria. Todos titulares e, por isso, olhados com desconfiança pelos outros jogadores do plantel, como é o caso dos jovens Albiol, Pedro Léon ou Canales, que foram contratados antes da chegada de Mourinho.
Ao longo da época, o balneário do Real foi-se dividindo em dois grupos principais. De um lado, os portugueses e brasileiros (com Kaká e Marcelo). Do outro, os espanhóis que, depois de vencerem o Campeonato do Mundo no ano passado, começaram a exigir o mediatismo e, sobretudo, os mesmos contratos dos estrangeiros “galácticos”.
“A personalidade de Cristiano é complicada para alguns jogadores, principalmente para Sergio Ramos [defesa espanhol]. Ele é muito egocêntrico”, explica Orfeo Suárez, editor de desporto do jornal El Mundo.
Neste cenário, o episódio Sara Carbonero podia ter sido explosivo. A namorada de Casillas chamou “egoísta e individualista” a Ronaldo num programa de televisão. Além de estrelas da equipa, o guarda-redes e o avançado são também os jogadores mais influentes destas facções. Por isso, Mourinho – que não queria intervir com medo de que isso pudesse ser entendido pelo grupo como uma tomada de posição – combinou com o presidente uma solução discreta e longe do balneário.
Em Outubro do ano passado, na véspera de um jogo em casa, Florentino Perez chamou os dois jogadores a sós ao seu gabinete no Estádio Santiago Barnabéu e obrigou--os a assistir ao DVD com a entrevista completa de Sara Carbonero. O presidente queria provar que as manchetes dos jornais tinham sido retiradas de contexto e que a jornalista se tinha limitado a responder a uma pergunta da Tele 5. Perez conseguiu o objectivo e Ronaldo admitiu que tinha interpretado mal as palavras de Sara Carbonero.
Esta reunião teve outro efeito: provou que a importância de Valdano era cada vez mais pequena e motivou Mourinho a exigir o que sempre quis: afastar o histórico director-geral dos seus jogadores. Com o acordo do presidente, Valdano foi proibido de se aproximar do relvado do estádio, dos campos de treino, em Valdebebas, e até das viagens da equipa. Quando o Real Madrid joga fora, em Espanha, o antigo jogador tem de voar no avião particular de Florentino Perez.
“Florentino fez-lhe ver que era melhor não estar mais com a equipa. Valdano aceitou e deu um passo atrás para evitar que o conflito fosse maior”, explica Tomás Roncero, um dos comentadores desportivos mais polémicos de Espanha.
No mês passado, dias antes do jogo contra o Barcelona para o campeonato (1-1), Mourinho voltou a reunir o grupo para atacar o director-geral. “Não sou hipócrita. No fim da época, ou sai o Valdano ou saio eu. Nem o posso ver. E são vocês que têm a chave de tudo: se ganharem um título eu fico, se perderem, eu vou embora. De agora em diante é que vamos ver quem está com a equipa e quem não está.” A ameaça foi terrível para o moral dos jogadores.
A blindagem da equipa é uma obsessão para Mourinho, que fez um acordo inédito com o aeroporto de Barajas. Nas viagens da equipa, técnicos e jogadores entram directamente para o avião sem passar pelos perímetros de segurança – um privilégio que era exclusivo dos funcionários da Ibéria. “Em todos os momentos se sente a grandeza do Real. Quando viajamos, quando chegamos a qualquer país, a qualquer cidade, mesmo em Espanha. Sente-se na imprensa a repercussão de tudo o que dizemos”, explica o treinador.
As regras do português para o staff são válidas até nos hotéis onde a equipa dorme. Antes da chegada de Mourinho, a 31 de Maio, o cozinheiro do clube limitava-se a servir um lanche ligeiro no autocarro depois dos jogos e a caminho do aeroporto. Agora, Jesus González viaja um dia antes para inspeccionar a cozinha do hotel, falar com os chefs e preparar ao pormenor as refeições, que são à base de massas, arroz, legumes e fruta. Os minibares dos quartos são esvaziados. Só ficam garrafas de água.
Em Fevereiro, na deslocação à Corunha para um jogo do campeonato contra o Deportivo, Mourinho perdeu a cabeça com o responsável pela organização das viagens da equipa e gritou contra a “incompetência” de Pablo Comino por não ter reservado o hotel María Pita. O treinador queria que as janelas dos quartos dos jogadores tivessem vista sobre as praias de Orzán e Riazor.
Foi nessa viagem que um dos guarda-costas de Mourinho foi esfaqueado por um adepto à saída do aeroporto. O treinador tentou esconder o caso mas ele acabou por ser revelado três dias depois na rádio Cadena Ser.
É durante o estágio no hotel que cada jogador recebe um dossiê personalizado com um DVD e um manual com as indicações de Mourinho sobre o adversário específico que vai enfrentar nessa jornada. Os movimentos com e sem bola no terreno, as diagonais tácticas, etc. Está lá tudo e com exemplos de outros jogos em vídeo.
Após o jogo com o Hércules em casa (que o Real venceu por 3-1), o canal Quatro encontrou o caderno de notas de Mourinho junto ao banco de suplentes e pediu a uma especialista para analisar a sua personalidade a partir da caligrafia. “Apesar de ter um carácter muito forte e com excelente capacidade de gestão, é nobre, uma pessoa boa, acessível e, acima de tudo, tem um nível intelectual abissal. É muito inteligente.”
E trabalhador. Mourinho e adjuntos quase vivem em Valdebebas, o centro de treino nos arredores de Madrid. “Passamos os dias inteiros juntos. A treinar ou a preparar os jogos. É a nossa segunda casa”, conta o treinador de guarda-redes Silvino que se recusa a falar muito mais. “O meu chefe não deixa. É preciso ter muito cuidado.”
Os portugueses vivem todos perto uns dos outros em Madrid. À excepção do antigo guarda-redes da selecção e José Morais, responsável pela observação e análise dos adversários, todos os portugueses de Madrid vivem no maior bunker VIP da Europa, La Finca.
O primeiro a mudar-se foi Cristiano Ronaldo, que pagou cerca de 4,7 milhões de euros numa mansão com sete quartos e um jardim de 2800 metros quadrados.
Mourinho - que paga 20 mil euros por mês para viver na antiga casa do cantor espanhol Alejandro Sanz -, o adjunto Rui Faria, Jorge Mendes, Pepe e Ricardo Carvalho tornaram-se seus vizinhos esta época através da influência do director de coordenação do Real Madrid, Javier Garcia Coll. Em Janeiro, o empresário até fez a sua festa de anos num dos restaurantes mais luxuosos de La Finca. Só foram convidados os jogadores portugueses de Madrid (incluindo Tiago, do Atlético).
“É uma urbanização reservada à elite económica. Por isso, é também a mais segura da Europa, com um triplo perímetro de segurança, e a mais privada. Quem lá vive, esquece-se do que se passa no mundo”, revela o arquitecto que foi também o mentor do projecto.
Privacidade é uma das palavras-chave de José Félix Mourinho. O treinador raramente se desvia do trajecto La Finca-Valdebebas. “O trabalho e a família absorvem-me. A esmagadora maioria do meu tempo é passado em casa e no clube. Parece-me uma óptima cidade, uma bonita cidade mas para mim não tem qualquer tipo de significado”, diz Mourinho, que nunca visitou o Museu do Prado.
O futebol é uma presença constante na família Mourinho. No dia 27 de Março, o guarda-redes Zé Mário, 8 anos, foi campeão de infantis B, Grupo IV, pelo Canillas, uma equipa de formação no bairro de Hortaleza. No jogo do título lá estava o pai na bancada, ao lado de Manolo Velásquez, antigo jogador do Real e que foi ver o afilhado. Na semana seguinte, Mourinho teve um dia de folga e viajou até Setúbal para contar pessoalmente aos pais como tinha sido esta vitória histórica. “Mal o vimos, ele gritou logo ‘já temos um campeão’”, revela Maria Júlia.
José, o sénior, faz questão de estar sempre presente nos momentos importantes das vidas dos filhos. A mediática cerimónia de apresentação no Real Madrid, a 28 de Maio, teve ser adiada três dias para que ele pudesse estar na Suíça e assistir à graduação da filha Matilde, 14, no Instituto Mexicano Lugano.
Nos quase 12 meses em que vive na capital espanhola, o técnico só aceitou dar a primeira entrevista televisiva no final de Março à Veo7. Não levantou qualquer restrição quanto aos temas mas exigiu que o encontro fosse às 12h30 no centro de treinos do Real Madrid. Mourinho não mudou de roupa de propósito para poder ser filmado com o fato-de-treino do Real.. “Queria que as pessoas pensassem que ele vive o clube 24 horas por dia e que se farta de trabalhar”, conta Casimiro Garcia-Abadillo, que esperou dois meses por aqueles 35 minutos.
As entrevistas tornaram-se um problema para os jornalistas que seguem o Real Madrid. É impossível falar com alguém ligado ao futebol sem que José Mourinho saiba. Ele decide quando e com quem todos os jogadores falam e até lhes dá dicas sobre o que devem dizer para ter mais impacto junto de adeptos e adversários.
Nem o director de comunicação, António Galeano, ou o director desportivo, Miguel Pardeza, estão autorizados a falar com quem quer que seja. Os seus poderes são zero.
O totalitarismo de José Mourinho irritou principalmente as antigas glórias do clube que estão em cargos directivos. Durante o jogo contra a Real Sociedad, em San Sebastian, o técnico exigiu ao delegado do Real que pressionasse mais o quarto árbitro para condicionar as decisões dos juízes. Chendo recusou-se e respondeu-lhe de forma seca ainda no relvado: “Em Madrid as coisas não funcionam assim!”
Mais do que a recusa de influenciar as decisões do árbitro, o que mais irritou Mourinho foi a referência do antigo defesa ao famoso “livro branco” do Real Madrid. Uma espécie de manual de etiqueta que Florentino Perez chegou a distribuir por todas as equipas do clube e que pedia aos jogadores para não criticarem os árbitros ou os adversários.
Mourinho sempre detestou esta mentalidade que serviu de pretexto para um dos seus célebres monólogos no balneário: “Vocês dizem que este é um clube de senhores, mas este clube é uma bandalheira. Estou-me a cagar para os senhores. Agora vão dizer isto ao presidente porque eu vou de férias e por mim já não volto!” 

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